domingo, 13 de junho de 2021

A morte do sobreiro

Aqui está ele no dia 6 de setembro de 2014, magnífico, uma beleza de sobreiro, pensei eu logo que o vi, a dar-me as boas vindas e a ocupar o lugar central do jardim do 'monte' a que chamei Casa do Canal, que alugo desde essa altura, com uma vedação a toda a volta, cerca de um km2 de terreno, casa com telhado de quatro águas, a indicar que foi construída ainda antes dos anos sessenta para um fiscal de rega, ao contrário das de duas águas, destinadas aos cantoneiros, ouve-se ali no jardim o som da água do canal de rega, que passa ali mesmo ao lado, perto de Coruche, cortando o país ao meio, distribuindo na sua passagem água vinda de duas barragens, a do Maranhão e a de Montargil, e que antes de acabar se ramifica em dois, parte com destino a Benavente, e parte para os campos de arroz do Porto Seixo, quase a chegar a Samora Correia. 


Depois de várias almoçaradas familiares e amigáveis, a 3 de outubro de 2015 reunimos o maior número de convivas de sempre na história da Casa do Canal, quando juntámos 71 comensais à sua sombra, foi um almoço da família Lanhoso, só ensombrado no mau sentido pela presença indesejável de um batalhão de moscas, atraído pelo cheiro a estrume que um vizinho resolveu espalhar, logo nesse dia. Ali estão ele e as mesas, à espera dos convivas.



Pois este relato diz respeito à morte deste sobreiro, que foi como é costume no caso da morte de qualquer ser vivo, uma surpresa, algo de inacreditável, não se pensa nas dezenas de anos em que estava ali parado, talvez centenas, mas sim no desfecho: um dia, reparámos que as folhas tinham caído e já não cresciam. Depois disso, como é também normal, inventámos teorias, foi isto que o matou, não, foi aquilo, foi a rega do jardim, já que os sobreiros dão-se mal com a água, por isso crescem naturalmente por ali. Mas vamos por partes, antes vou mostrar uma das últimas ocasiões em que pudemos desfrutar da sua sombra, num almoço caseiro a 28 de novembro de 2015. 


E foi nesse inverno, nos princípios de 2016, que notámos a falta da tal sombra que já dávamos por garantida. Chamámos o Dr. jardineiro, mas já nada se podia fazer. A não ser preservar a sua memória, e foi isso que fizemos durante os três anos da praxe, duma forma prática, que passo a documentar. 

A primeira fase foi o Dr. jardineiro que fez, cortou ramos, encheu buracos com cimento, madeiras, espuma, telha, de tudo um pouco - no final mostro uma fotografia duma escultura com cimento, telhas, espuma e madeira, que "saiu" da árvore quando foi abatida. 

Na mesma empreitada, investimos também num sombreiro, que se vê na foto ao fundo, projectado pela minha pessoa e realizado pelo Dr. jardineiro: tem onze metros por dois, está preparado para abrigar 30 pessoas sentadas. Os bancos corridos encaixam em pés de madeira fixos, e guardam-se debaixo de uma cama; as respetivas mesas são desmontáveis; a tela da cobertura deixa passar o vento, embora abrigue da chuva, se for miudinha; os postes e traves, a cada dois metros, são em madeira tratada. O chão é de gravilha com tela escura por baixo, para evitar o eventual enraizamento de ervas. 

Para dar "vida" ao sobreiro decepado, pendurámos quase uma dezena de flores de barro pintado, que a Quica prolificamente produzia por essa altura. Para a fotografia, a 17 de março de 2016, vestimo-la com um cinto feito de trapilho entrançado, a dar um toque feminino à coisa.




Resolvi então concorrer à bienal de Coruche de 2019, com o projeto da mumificação do sobreiro. 

Para garantir a preservação a longo prazo tentei evitar a entrada de água, que causa o apodrecimento da madeira, pelo que comecei por cobrir todos os buracos, com espuma de poliuretano em spray, com gesso, com betume, e depois pintei o tronco com cal, como se vê nesta fotografia, tirada a 5 de abril de 2018.

A fotografia seguinte, já a 29 de setembro de 2018, mostra uma fase posterior dos trabalhos, na qual além da cal, que foi aplicada a todo o tronco e às áreas cobertas com espuma de poliuretano, já tinha sido aplicada na parte superior dos troncos tinta de spray graffiti azul celeste.


O motivo que seria pintado na árvore, sugerido pela Quica, seria a paisagem circundante, como memória do sobreiro (obviamente). Muni-me de dezenas de latas de spray graffiti de várias cores da natureza, e pintei camada após camada, tentando sempre melhorar a estanquicidade da árvore. A foto seguinte, tirada a 31 de março de 2019, mostra a fase final do trabalho de pintura. 


O projeto que foi levado a concurso em agosto de 2019 mais parecia um projeto de engenharia. Previa o corte e levantamento do sobreiro com a ajuda de uma grua, e a sua colocação numa base de betão, tal como as que calculei várias vezes para suportar faróis ou postes de iluminação, durante os anos em que trabalhei como engenheiro de projetos. Recebi depois uma carta a dizer que o meu projeto não era aceite para a bienal de 2019, mas que continuasse a concorrer nas próximas oportunidades (bienais).

Recapitulando, entre Março de 2016 e Março de 2019, tentei reconstruir a árvore como estátua, para preservar a memória do sobreiro. Entre então e hoje, a natureza tomou conta da situação, e o tempo, como grande equalizador, trabalhou no seu processo de des-construção do sobreiro, inexoravelmente, até que hoje, precisamente hoje, 13 de Junho de 2021, desapareceram qualquer vestígios do sobreiro. Foi este fim-de-semana que consegui contactar os homens que iriam demolir o que restava do sobreiro, que entretanto ameaçava cair, com eventuais consequências desastrosas. O vídeo seguinte mostra o momento em que caiu o primeiro ramo - vê-se também no vídeo (em ecrã inteiro) que a pintura já tinha desaparecido quase toda.


O vídeo seguinte documenta a demolição final (uma camioneta está a puxar a corda) 


Curiosamente, esta escultura "saiu" de dentro da árvore

... e finalmente o sobreiro foi enterrado.


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