'Sobre o meu trabalho não falo', ouvi dizer ao entrevistado, e nunca mais me esqueci dessa. Por razões de confidencialidade, também não posso detalhar. Mas posso e quero falar do que significa hoje para mim o meu trabalho, que é um 'part-time': tanto uma oportunidade como um privilégio. Nunca pensei chegar a esta realização, depois de deixar a engenharia e recomeçar tardiamente. Recapitulo.
Foram mais de uma boa dúzia de anos a expandir uma atividade em Portugal, no âmbito da supervisão remota de dados e controlo de processos ligados ao clima e à irrigação, até ao dia em que me lembro de ver uma montanha à minha frente na voz da então 1º ministro Manuela Ferreira Leite, a nossa Tatcher à portuguesa, dizendo: 'a partir de agora, o Estado não vai mais sustentar a economia'; ora os meus clientes eram quase todos... o Estado - quem mais se ia interessar pelos tais dados sobre o clima, que não são coisa que se venda. Logo se materializou a ameaça, e a minha credibilidade sustentada em vendas e orçamentos foi-se rapidamente volatilizando.
Em nome dos velhos tempos, propuseram-me serviços técnicos, na prática passava a vida com as mãos sujas de óleo, fazia manutenção a equipamentos em estações de abastecimento de camiões de combustível, supervisão de frotas dos ditos camiões, etc. Para mais, a sede mudou-se para fora de Lisboa, na zona norte, quando eu morava na zona sul, duas horas de bichas para cada lado. Logo, estava eu a pensar nos riscos de abandonar um emprego certo e para toda a vida, quando recebo um telefonema do CEO de uma firma irlandesa, cujos equipamentos de supervisão de dados tinha utilizado num projeto de medição de caudais nas levadas da Madeira: 'sabes de alguém que queira ir e vir aos campos de petróleo do golfo?' - respondi que sim, era eu. Estávamos em 2007.
Foram mais outra meia dúzia de anos a ir e vir, ele era o Qatar, os Emirados, o Egito, o Bahrain, e no final o Kuwait. Nos primeiros anos a base de sustentação do negócio eram os sistemas de supervisão e controlo de duas plataformas de produção de petróleo no Qatar, cada uma com cento e tais 'jackets', que são estruturas metálicas com um a dez poços de extração de petróleo. Nas plataformas, ficava cerca de um mês de cada vez, o meu record foram 50 dias, dormia em beliches, partilhando o quarto com quem calhasse, bem alimentado, viajava todo o dia num mar quase sempre tipo lago, numa espécie de traineira, com uma tripulação filipina, egípcia, indonésia... que se revezava todas as semanas. Em cada plataforma, um centro de supervisão com o software da marca e transmissão de dados para terra, em Doha, onde por vezes também ficava. Ia-se e vinha-se de helicóptero. Da primeira vez que fui estive três dias para embarcar, nunca havia lugar no helicóptero, apesar de ter o lugar marcado. Mais para o fim já me conheciam, alguém gritava de lá 'Adriano, my friend', e eu embarcava logo, passava à frente.
Depois chegou a ameaça, ou vais para lá ou vais de carrinho, só me restava negociar o ordenado chorudo, e fiquei dois anos e meio a viver no Kuwait. Até que a firma irlandesa se vendeu a uma americana. Que depois se vendeu a outra maior, também americana. No processo consegui sair com uma boa maquia, e voltei a Portugal em 2014, já prometido um novo emprego, outra firma americana, também na engenharia e software, desta vez faziam sistemas de comunicações via rádio/internet para 'smart-cites', e que tinham um projeto-piloto nos contadores da eletricidade em Portugal, e outro na iluminação pública em Paris. Dois anos volvidos, os projetos finalizados, a firma americana acabou por ser vendida a outra, para não variar - já era a terceira compra-e-venda americana de companhias a que assistia - e no processo fico desempregado aos 57 anos.
Para não estar inativo fiz acompanhar os dois anos de subsídio de desemprego com a atividade de consultor imobiliário, fiz alguns negócios, mas só entre amigos, nunca fora desse círculo: o terreno de um amigo na Arrábida, a casa de férias de outro amigo em Santarém, a minha própria casa na Caparica, e uma quinta de família em Coimbra. Lá passei um recibo único no final, e depois veio a reforma, porque já contava trinta e oito anos de descontos. O aconchego da reforma permitiu-me iniciar uma nova carreira em 'part-time', quatro dias por semana, ou 26 horas, como intérprete ao telefone, e mais uma vez trabalho para uma firma americana, já lá vão dois anos.
É que existe nos EUA, Canada e Reino Unido um hábito saudável de ligar ao intérprete sempre que o cliente, que vive lá e não fala inglês, se dirige a um serviço público ou de saúde. Assim, finalmente chego ao assunto desta crónica - o meu trabalho é ajudar. Logo é amar. Alguns portugueses, poucos, geralmente são brasileiros, que imigram hoje em catadupa para os EUA, vão aos hospitais, têm filhos, querem tratar da eletricidade e do gás, ter seguros, contas bancárias, quando são apanhados sem documentos são detidos... e precisam de tradução. São mil viagens em mil situações. Descobri que amo o povo brasileiro. E quando ajudo, fico feliz.
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